Capítulo 64 — Do lamaçal à promessa

“O dia em que a lama quis me engolir, mas Deus me devolveu o nome, o cheiro e o destino.”

Eu cresci ouvindo uma frase que virou jargão oficial das reuniões de família:
“Essa menina já caiu na vala… nada mais derruba ela.”

E era dito sempre assim — entre uma gargalhada, um café depois do almoço, uma história mal contada E alguém cutucando o outro na varanda.
E quando eu aparecia com alguém novo para a família conhecer, então?
Pronto. Lá vinha a lenda sendo encenada.

Durante muitos anos eu também repeti isso como quem veste uma armadura:
“Meu querido… logo eu, vividona… já caí na vala e sobrevivi. Você acha mesmo que isso vai me afetar?”

Eu dizia.
Meus amigos diziam.
Até quem se relacionou comigo usou essa frase como apelido carinhoso — e meio trágico.

Mas esses dias… algo virou dentro de mim.
Porque talvez esse jargão fosse muito mais do que humor de família.

Mas antes de te contar o que mudou dentro de mim, deixa eu te levar para a cena original — a que deu nome a essa história:

Eu tinha uns dois, três anos.
Minha irmã, ainda criança, estava sentada comigo na porta de casa.
Do lado, um valão a céu aberto.
Sim, aquele mesmo: água escura, cheiro forte, lama grossa.

Eu me equilibrei na mureta.
Balanço pra cá, balanço pra lá…
E de repente, o tropeço.

Eu caí.
Mas não afundei.
Fiquei suspensa pela parte mais rasa, deitada sobre a lama, como se o próprio chão tivesse me segurado com a pontinha dos dedos.

Minha irmã tentou me puxar e eu escorreguei.
Segunda queda: dessa vez, eu mergulhei de verdade.
O grito dela ecoou pela rua.
Meu pai veio correndo, me resgatou daquele buraco, e quando me tirou…

Eu era só lama.
Da cabeça aos pés.
No ouvido, no nariz, no cabelo.
Um boneco vivo moldado em barro sujo.

Ele me limpou com álcool, cotonete, cuidado, desespero e amor.
O milagre? Eu não fiquei doente.
Não peguei uma infecção.
Não morri.
Só virei história de família.

E por décadas, sempre que a frase “essa menina já caiu na vala” aparecia, a memória vinha acompanhada de risada.
Mas nunca da revelação.
Até que um dia Deus me fez lembrar da lama — mas não para rir.

E revisitando essa cena na memória, algo doeu e brilhou ao mesmo tempo.
Porque eu percebi que talvez aquela história não fosse apenas um capítulo engraçado da infância, mas um sinal profético do que Deus faria comigo tantos anos depois.

Eu também caí em outros valões.
Não de lama literal, mas de escolhas ruins, de pecados escondidos, de lugares que não eram pra mim, de amores que me adoeceram, de inseguranças que me aprisionaram, de crenças que me deformaram por dentro.

Caí na lama de uma identidade quebrada.
De um coração ferido.
De uma versão de mim que eu nem reconhecia mais.

E mais uma vez — eu não morri.
Mais uma vez — alguém veio me buscar.
Mais uma vez — eu fui resgatada das águas escuras.

E dessa vez quem desceu no valão por mim foi Deus.

Com a mesma firmeza com que meu pai me tirou do fundo quando eu era só uma menina.
Ele me ergueu daquilo que deveria ter me matado.

Ele limpou cada canto onde a lama tinha entrado.
Ele higienizou meu interior.
Ele lavou tudo o que podia me contaminar.
Ele restaurou aquilo que eu mesma tinha destruído.
Ele devolveu meu nome, minha cor, meu cheiro, meu destino.

E hoje, quando olho pra trás, eu entendo:
Eu só não temo mais certas tempestades porque eu já sei o gosto da água suja e conheço a mão que me tirou de lá.

Aquele jargão que eu carreguei por tantos anos talvez nunca tenha sido só brincadeira.
Talvez fosse memória espiritual anunciando o que eu viveria adulta.

Eu sobrevivi à lama da infância.
Eu sobrevivi à lama emocional.
Eu sobrevivi à lama espiritual.

E hoje, quando o céu escurece, quando o vale chama, quando a vida fecha o tempo, eu posso dizer com convicção:

Isso aqui não me assusta.
Não tem força para calar o que Deus construiu em mim.
Eu sei de onde Ele me tirou.
Eu sei quem Ele me fez ser.
Eu sei o que Ele purificou.
Eu sei a promessa que Ele selou sobre mim.

E ninguém que já foi resgatado da lama, tem medo de garoa.

Eu fui tirada do lamaçal para um lugar firme.
E o firme que Deus dá ninguém consegue arrancar.

“Tirou-me de um poço de destruição, de um poço de lama; colocou-me os pés sobre uma rocha e firmou-me os passos.”
— Salmos 40:2

Pamela Martins

“Cada testemunho compartilhado aqui conta um pouco de mim e muito de Deus.
Espero que aquilo que um dia me feriu, sirva de cura para quem ler, e que cada palavra escrita com dor, floresça em consolo, esperança e recomeço.”

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